Lourdes Modesto

Algum potencial

TRABALHO – DIONNE BRAND

BRAND, Dionne. Bread out of stone. [s.l.]: Vintage Canada, 1998. p. 41-42.

Era aquele escritoriozinho no fundo de um prédio na rua Keele. Eu tinha ligado na manhã anterior, procurando por um trabalho, e o homem respondeu mencionando aquele nome escocês forte do meu suposto pai, me disse que eu viesse logo e que o trabalho seria meu. Sim, foi naquele escritoriozinho no fundo de um prédio na rua Keele quando eu estava completando dezoito anos, e eu vesti o meu melhor vestido, salto alto e batom e quarenta e quatro quilos de esforço desesperado em emular heterossexualidade feminina, desejando parecer o que o homem do telefone tinha imaginado para que assim eu conseguisse o trabalho. Quando eu entrei naquele escritoriozinho e vi o sorriso do homem ao telefone se apagar e o trabalho desaparecer por que de repente era necessário ter experiência ou o trabalho tinha sido dado para outra pessoa, não, não haveria entrevista e se fosse hoje eu teria processado aquele merda por ter me feito ir embora com o meu eu de dezoito anos tentando não chorar e sentindo o riso, o riso que as pessoas Negras aprendem, desdenhoso e que desdenha de si, crescendo em meu peito. Sim, foi o homem ao telefone, naquele escritório na rua Keele, a sua fantasia de uma garota escocesa que ele poderia molestar enquanto ela preenchia papéis nos gabinetes do escritoriozinho, foi a vontade de chorar no meu melhor vestido e no salto alto em que eu quase não conseguia andar e com o batom que a minha irmã me ajudou a colocar direito além de fazer as minhas sobrancelhas e me obrigar a passar base para, eu imagino, embotar o impacto da minha negritude para que o homem no escritoriozinho me desse o trabalho. O que impulsionou as minhas pernas de volta ao metrô foi a vergonha. Que eu pudesse pensar em conseguir aquele trabalho, mesmo que um trabalho tão pequeno e desprezível, que um homem branco qualquer pudesse esquecer de si e ao menos me ver como alguém a quem ele pudesse explorar, e eu ansiava ser considerada alguém que se pudesse explorar. Era 1970. Uma cozinha então, talvez, não um escritório. Minha irmã trabalhava nas cozinhas de hospitais e foi lá onde eu encontrei um trabalho na semana seguinte, e foi lá onde nós esperamos o refluxo e o fluxo de benevolência e necessidade nesse lugar branco.

A consciência mestiça – Rumo a uma nova consciência – Gloria anzaldúa

ANZALDÚA, Gloria. Boderlands – La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: aunt lute books, 1987. p. 77-79.

Por la mujer de mi raza/hablará el espíritu.[1]

            Jose Vascocelos, filósofo mexicano, previu uma raza mestiza, uma mezcla de razas afines, uma raza de color – la primera raza sínteses del globo. Ele chamou-a de raça cósmica, la raza cósmica, uma quinta raça que abraçasse as outras quatro maiores raças do mundo.[2] Oposta à teoria da pureza da raça ariana e à política de purezaracial que a América branca pratica, sua teoria é de inclusão. No encontro de dos ou mais rios genéticos, com cromossomos que se “cruzam” constantemente, esta mistura de raças, em vez de resultar num ser inferior, produz cria híbrida, uma espécie mutável e mais maleável, com uma rica piscina de genes. A partir dessa polinização cruzada racial, ideológica, cultural e biológica está sendo feita uma consciência “alien” – a nova consciência mestiça, uma conciencia de mujer. É a consciência das Fronteiras.

Uma lucha de fronteras / Uma luta de Fronteiras

Porque Eu, uma mestiça,

ando frequentemente de uma cultura

para outra,

porque eu estou em todas as culturas ao mesmo tempo,

alma entre dos mundos, tres, cuatro,

me zumba la cabeza com lo contradictorio.

estoy norteada por todas las vocês que me hablan

simultaneamente.

            A ambivalência do encontro de vozes gera estados de perplexidade mental e emocional. O conflito interno gera em insegurança e indecisão. A personalidade dual ou múltipla da mestiça é amaldiçoada pela inquietação psíquica.

            Num estado mental constante de nepantilismo, palavra Asteca que significa estar dividido entre dois caminhos, la mestiça é um produto da transferência dos valores culturais e espirituais de um grupo para outro. Tricultural, monolíngue, bilingue, ou multilíngue, falando um patoá e num estado perpétuo de transição, a mestiça lida com o dilema das raças mistas: a qual coletividade a filha da mulher de pele escura deve escutar?

            El choque de un alma atrapado entre el mundo del espíritu y el mundo de la técnica a veces l adeja entullada. Ninada em uma cultura, apertada entre duas culturas, indecisa entre três culturas e seus sistemas de valores, la mestiça vivencia uma guerra de corpo, uma guerra de fronteiras, uma guerra interna. Como todos os outros, nós vivemos a versão da realidade que nossa cultura revela. Como todos os outros que vivem ou viveram em mais de uma cultura, recebemos mensagens múltiplas, frequentemente opostas. A junção de dois padrões de referência[3] consistentes, mas incompatíveis causa um choque, uma colisão cultural.

            Entre nós e entre a cultura chicana, crenças comuns da cultura branca atacam crenças comuns da cultura mexicana, e ambas atacam crenças comuns da cultura indígena. Inconscientemente, vemos um ataque a nós mesmos e a nossas crenças como uma ameaça e tentamos bloquear com uma contraposição.

            Entretanto, não é suficiente ficar na margem oposta do rio, bradando perguntas, desafiando as convenções brancas e patriarcais. A contraposição prende a pessoa num duelo entre opressor e oprimido; presa num combate mortal, como um policial e um criminoso, ambos reduzidos ao denominador comum da violência. A contraposição refuta as visões e crenças da cultura dominante e, por isso, é altivamente desafiadora. Toda reação é limitada e dependente daquilo que se está reagindo. Pois a contraposição se origina de um problema com autoridade – externa e interna – é um passo rumo à liberação da dominação cultural. Mas não é um modo de viver. Eventualmente, no nosso rumo a uma nova consciência, nós teremos que abandonar a margem oposta do rio, curar de alguma forma a divisão entre dois combatentes mortais para que possamos estar em ambas as margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, ver pelos olhos da serpente e da águia. Ou talvez nós vamos decidir nos libertar da cultura dominante, declará-la como uma causa perdida e cruzar a fronteira para um território novo e separado. Ou podemos seguir outra rota. As possibilidades são inúmeras, uma vez que decidamos agir e não reagir.


[1] Este é meu “pastiche” da ideia de Jose Vascocelos. Jose Vascocelos, La Raza Cósmica: Missión de la Raza ibero-Americana  (México: Aguilar S.A. de Ediciones, 1961).

[2] Vascocelos.

[3] Arthur Koestler chamou de “bisociação” Albert Rothenberg, The Creative process in Art, Science, and Other Fields (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1979), 12.

Sobre a poesia – dionne brand

Tradução: Lourdes Modesto

BRAND, Dionne. Bread out of stone: recollections on sex, recognitions, race, dreaming and politics. [s.l.]: Vintade Canada, 1998. p. 195-196.

Toda palavra converge em si mesma, toda palavra cai após ser dita. Nenhuma das respostas que eu dei durante os anos é a verdadeira. Aquelas respostas foram dadas como uma guerrilheira com seu rosto num lenço, seus olhos imóveis. Ela está imóvel, pronta para um movimento rápido, mas imóvel. Suas botas firmes, a areia embaixo das botas se espalha e empoeira. Mas os olhos dela estão imóveis. E eu tenho respondido como um prisioneiro responde à um interrogatório, contando apenas o suficiente para acalmar o interrogador e só o suficiente para traçar uma história para que ela possa repetir sem deixar nada de fora e sem se contradizer da próxima vez que tiver que contar de novo. Eu tenho dito a eles as mesmas coisas de novo e de novo, e eu direi a eles de novo quando eles perguntarem porque eles só perguntam as mesmas coisas, como de onde eu sou e se eu os odeio.
Mas se eu pudesse me dar um momento, eu diria que tem sido um alívio escrever poesia, tem sido um espaço para que eu viva.
Eu vivi momentos em que a vida do meu povo era tão difícil de suportar que a poesia parecia inútil, e eu digo que não há momento em que eu não pense nisso agora. Às vezes tem sido mais crucial ceifar a grama alta num campo em Marigot; às vezes tem sido mais importante entender como uma mulher sem documentos em Toronto pode ter seu bebê sem ser pega e deportada; às vezes tem sido mais útil organizar uma manifestação em frente a estação policial nas ruas Bay e College. Frequentemente não há qualquer razão para escrever poesia. Há dias em que eu não consigo pensar em nenhuma pequena razão para escrever sobre esta vida.
Há uma fotografia minha de quando eu tinha quatro anos. Eu estou de pé ao lado da minha irmãzinha e da minha prima. Minha irmã mais velha está na foto também. Eu não pareço comigo mesma, exceto por minhas pernas, que eram curvas e ainda são. Minha irmãzinha está chorando, seus dedos em sua boca, e minha prima parece atordoada, como se ela tivesse sido jogada na foto. Minha irmã mais velha está alta e esbelta, indicando o glamour que viria descrever a sua vida. Ela parece Nancy Wilson. Sapatos pretos de vinil, vestido branco com decote canoa. Eu estou olhando para a câmera, minha boca aberta. Estou segurando um chocalho, balançando na foto, para que a minha irmãzinha parasse de chorar. Eu pareço estar tentando fazer com que essa foto funcione. Eu lembro do momento, de conscientemente me aprontar, segurar o chocalho, ser chamada para o ato, dizer para a minha irmãzinha não chore, veja, não chore. Meus olhos na foto não são como os de uma garotinha, eles parecem sensatos, imóveis. Os olhos da minha irmãzinha estão lacrimejantes; os da minha prima, assustados; os da minha irmã mais velha, tristes. Os meus, imóveis. Observando. Eu lembro de observar. De saber que esta era uma ocasião de cuidar de nós mesmas e de segurar o chocalho para que a minha irmã não chorasse. Eu só reconheço minhas pernas e meus olhos. Imóveis. Atentos. 
Se eu pudesse ter um segundo. Sacudindo a areia dos meus sapatos. A poesia está aqui, exatamente aqui. Algo lutando contra a forma como vivemos, algo perigoso, algo honesto.

Em busca dos jardins das nossas mães – Alice Walker

Tradução: Lourdes Modesto

Walker, Alice. In search of our mother’s gardens. [s.l.]: Orion books, [s.d.], posições 3282-3472. [Kindle ebook]

Eu descrevi sua própria natureza e temperamento. Disse como precisavam de uma vida maior para sua própria expressão… Eu apontei que suas emoções haviam transbordado em caminhos que as dissiparam, em vez de nos canais apropriados. Eu falei, belamente pensei, sobre uma arte que nasceria, uma arte que abriria o caminho para mulheres como ela. Eu pedi para que ela desejasse e construísse uma vida interior contra a vinda daquele dia… Eu cantei, com um estranho tremor na minha voz, uma promessa em canção.

Jean toomer, “avey”
cane

O poeta conversando com uma prostituta que cai no sono enquanto ele fala –

Quando o poeta Jean Toomer caminhou pelo Sul no começo dos anos 20, ele descobriu uma coisa curiosa: mulheres negras cuja espiritualidade era tão intensa, tão profunda, tão inconsciente, que elas mesmas não tinham plena consciência da riqueza que carregavam. Elas tropeçavam cegamente pelas suas vidas: criaturas de corpos tão abusados e mutilados, tão e embaraçadas e confusas pela dor, que elas se consideravam indignas até de fé. Nas abstrações abnegadas, seus corpos se tornavam mais do que “objetos sexuais” para os homens que as usavam, mais que meras mulheres: elas se tornavam “Santas”. Em vez de serem percebidas como pessoas inteiras, seus corpos se tornavam santuários: suas mentes se tornavam templos dignos de adoração. Estas Santas loucas olhavam fixamente para o mundo, selvagens, como loucas – ou  quietamente, com suicidas; e o “Deus” frente ao seu olhar era tão mudo como uma grande rocha.

Quem eram estas Santas? Estas loucas, tolas, pobres mulheres?

Algumas delas, sem dúvida, eram nossas mães e avós.

É assim que elas pareciam para Jean Toomer, ainda no calor do Sul pós-reconstrução: borboletas extraordinárias presas num mel cruel, labutando para viver suas vidas numa era, num século, que não as reconhecia, exceto como “as mulas do mundo”. Elas tinham sonhos que ninguém conhecia – nem elas mesmas, ao menos de forma coerente – e tinham visões que ninguém entendia. Elas vagavam ou sentavam pela roça murmurando canções de ninar para fantasmas, e desenhando a mãe de Cristo com carvão nas paredes dos fóruns.

Elas forçavam suas mentes para fora dos seus corpos e seus espíritos vigorosos buscavam se levantar do chão duro de barro vermelho, como frágeis redemoinhos. E quando aqueles frágeis redemoinhos caiam, em partículas despedaçadas, sobre o solo, ninguém lamentava. Ao contrário, homens acendiam velas para celebrar o vazio que permanecera, como as pessoas que entram num espaço bonito, mas vazio, fazem, buscando ressuscitar um Deus.

Nossas mães e avós, algumas delas: dançavam músicas que ainda não tinham sido escritas. E elas esperaram.

Elas esperaram pelo dia em que a coisa desconhecida dentro delas seria compreendida, mas imaginaram, em algum lugar da sua escuridão, que no dia da sua revelação, elas já estariam mortas há muito tempo. Entretanto, para Toomer elas caminhavam, até mesmo corriam, em slow motion. Porque elas não iam imediatamente para algum lugar e o futuro não estava ainda ao alcance delas. E homens tomaram nossas mães e avós, “mas não tiveram nenhum prazer nisso.” Tão complexa era a paixão e calma delas.

Para Toomer, elas permaneceram desocupadas e inativas como campos de outono, a colheita sempre distante: e ele as viu entrar em casamentos sem amor, sem alegria; e tornarem-se prostitutas, sem resistência; e tornarem-se mães, sem se preencher.

Pois estas, nossas avós e mães, não eram Santas, mas Artistas; levadas à loucura e ao entorpecimento porque as fontes de criatividade dentro delas não podiam ser extravasadas. Elas eram Criadoras que viviam em desperdício espiritual por serem tão ricas em espiritualidade – que é a base da Arte – que lidar com seus talentos indesejado e sem uso levou-as a loucura. Jogar fora esta espiritualidade era a tentativa patética para aliviar o peso das suas almas, para que seus corpos cansados e sexualmente abusados pudessem aguentar.

O que significava ser uma artista negra no tempo das nossas avós? E no tempo das nossas bisavós? É uma pergunta cuja resposta é cruel o suficiente para parar o coração.

Você teve uma tataravó genial que morreu sob algum olhar branco ignorante e depravado? Ou que era convidada a fazer biscoitos para um vagabundo preguiçoso enquanto ela clamava em sua alma a vontade de fazer aquarelas do pôr do sol ou da chuva caindo nas pastagens verdes e calmas? Ou que o corpo foi destruído e forçado a ter crianças (que eram vendidas e levadas para longe delas mais que frequentemente) – oito, dez, quinze, vinte crianças – quando sua única alegria era a ideia de modelar figuras heroicas em pedra ou em barro?

Como a criatividade da mulher negra deveria permanecer negra, ano após ano, século após século, quando, na maior parte do tempo em que pessoas negras estiveram na América, uma pessoa negra lendo ou escrevendo era crime? E a liberdade de pintar, esculpir, expandir a mente com ação não existia. Imagine, se você puder imaginar, o que deve ter acontecido se cantar, também, tivesse sido proibido por lei. Ouvir as vozes de Bessie Smith, Billie Holiday, Nina Simone, Roberta Flack e Aretha Franklin, entre outras, e imagine essas vozes abafadas para sempre. E então você poderá começar a entender as vidas das nossas “loucas”, “santificadas” mães e avós. A agonia das vidas das mulheres que podem ter sido poetas, novelistas, ensaístas e contistas (durante séculos), que morreram com seus dons presos dentro delas.

E, se esse é o fim da história, nós teríamos por que chorar na minha paráfrase do grande poema de Okot p’Bitek:

Oh, minhas comadres

Vamos todas chorar juntas!

Venham

Vamos lamentar a morte da nossa mãe,

A morte de uma Rainha

A cinza produzida

Por uma grande fogueira!

Oh, estes lares estão totalmente mortos

Fechem os portões

Com espinhos lacari

Porque nossa mãe

A criadora do trono se foi!

E todas as jovens mulheres

Pereceram na selva

Mas este não é o final da história, pois nem todas as jovens mulheres – nossas mães e avós, nós mesmas – pereceram na selva. E se nos perguntarmos o porquê, e buscarmos pela resposta, nós saberemos, ultrapassando todos os esforços de apagar da nossa mente, exatamente quem, e de quê, nós mulheres negras Americanas somos.

Um exemplo, talvez o mais patético, o mais incompreendido, pode mostrar uma gota do trabalho das nossas mães: Phillis Wheatley, uma escrava de 1700.

Virginia Woolf, no seu livro Um teto todo seu, escreveu que para que uma mulher escreva ficção ela deve ter, certamente, duas coisas: um teto todo seu (com chave e fechadura) e dinheiro o suficiente para se sustentar.

Então o que dizer de Phillis Wheatley, uma escrava, que não possuía nem a si mesma? Uma enferma e frágil menina negra que às vezes precisava até de alguém que a servisse – tão precária era sua saúde – e que, se tivesse sido branca, seria facilmente considerada intelectualmente superior a todas as mulheres e à maioria dos homens da sociedade de sua época.

Virginia Woolf escreveu ainda mais, não falando da nossa Phillis, que “qualquer mulher nascida com um dom no século XVI [insira “século XVIII”, insira “mulher negra”, insira “nascida ou tornada escrava”] teria certamente enlouquecido, atirado em si mesma, ou terminado seus dias numa cabana solitária fora da vila, meio bruxa, meio feiticeira [insira “Santa”], temida e alvo de zombaria. Porque é preciso pouca habilidade e psicologia para ter certeza que uma menina altamente dotada que tentou usar seu dom para poesia terminaria tão frustrada e impedida por instintos divergentes [adicione “correntes, armas, o chicote, ter seu corpo como posse de outrem, submissão a uma religião alheia”], que ela certamente perderia sua saúde e sua sanidade.

As palavras-chave, no que se relacionam a Phillis, são “instintos contrários”. Pois quando nós lemos a poesia de Phillis Wheatley – como quando nós lemos os romances de Nella Larsen ou a autobiografia que soa estranhamente falsa da escritora negra mais livre de todas, Zora Hurston – a evidência do “instinto contrário” está por toda parte. Sua lealdade estava completamente dividida, e da mesma forma, sem questionamento, sua mente.

Mas como poderia ter sido de outra forma? Capturada aos sete anos, uma escrava de uma família rica, brancos adoráveis que incutiram nela a “selvageria” africana de onde eles a “resgataram”… imagino se ela era capar de lembrar da sua terra natal da forma que ela tinha conhecido ou da forma que sua terra realmente era.

Contudo, por ela tentar usar seu dom da poesia em um mundo que tinha feito dela uma escrava, ela era “tão frustrada e perturbada por … instintos contrários, que ela … perdeu sua saúde…”. Nos últimos anos da sua breve vida, sobrecarregada com a necessidade de expressar seu dom e com uma “liberdade” sem dinheiro e sem amigos e várias crianças para quem ela devia trabalhar vigorosamente para alimentar, ela perdeu sua saúde, certamente. Sofrendo de má nutrição e negligenciada, além de padecer de sabe se lá quais agonias mentais, Phillis Wheatley morreu.

A negra, raptada, escravizada Phillis foi tão despedaçada pelos “instintos contrários” que sua descrição da “Deusa” – como ela chamava poeticamente a Liberdade que não teve – é ironicamente, cruelmente humorística.

E, de fato, manteve Phillis ridicularizada por mais de um século. Ela é normalmente lida para perpetuar a memória de Phillis como a de uma mulher tola. Ela escreveu:

A Deusa vem, ela se move divinamente cândida,

Azeitonas e louros amarram seu cabelo dourado.

Onde quer que brilhe essa nativa dos céus,

A Deusa vem, ela se move divinamente cândida,

Azeitonas e louros amarram seu cabelo dourado.

Inúmeros encantos e graças nascem. [Meu itálico]

É óbvio que Phillis, a escrava, penteava o cabelo da “Deusa” todas as manhãs; talvez antes de trazer o leite ou preparar o almoço da sua sinhá. Ela pegava suas metáforas da única coisa que via como estando acima de todos os outros.

Sabendo o que sabemos hoje, nos perguntamos: “Como ela conseguiu?”

Mas finalmente, Phillis, nós entendemos. Nenhum riso em relação à suas linhas rígidas, difíceis, ambivalente nos é forçado. Nós sabemos hoje que você não foi uma idiota ou uma traidora; apenas uma pequena menina negra adoentada, tirada de sua casa e do seu país e escravizada; uma mulher que ainda lutava para cantar a canção que foi seu dom, mesmo que numa terra de bárbaros que te louvavam por sua língua confusa. Você não cantou muito, mas manteve vivo, como muitos dos seus ancestrais, a noção da canção.

As mulheres negras são chamadas, no folclore que aptamente identifica o status de alguém na sociedade, como “a mula do mundo”, porque nos foi dado o fardo que todas as outras pessoas – quaisquer outras pessoas – se recusaram carregar. Também nos chamam de “Matriarcas” “Supermulheres” e “Vadias Más e Cruéis”. Sem mencionar “Castradoras” e “Mamães de Sapphire”. Quando clamamos por compreensão, nosso caráter foi distorcido; quando pedimos que simplesmente se importassem, nos deram apelos emocionalmente vazios e depois nos jogaram no canto mais esquecido. Quando pedimos amor, nos foi dado filhos. Ou seja, mesmo nossos presentes mais singelos, nossas labutas de fidelidade e amor, foram silenciados em nossas gargantas. Ser uma artista negra, mesmo hoje em dia, rebaixa nosso status de muitas formas, em vez de aumentá-lo: e mesmo assim, seremos artistas.

Portanto, nós devemos nos impor e buscar e identificar com nossas vidas a criatividade vibrante que algumas das nossas bisavós não tiveram permissão de conhecer. Eu pontuo algumas delas porque é bem sabido que a maioria das nossas bisavós sabiam, mesmo sem “saber”, a realidade da sua espiritualidade, mesmo que elas não pudessem reconhecê-la para além das canções na igreja – e elas nunca tiveram sequer intenção de desistir desta espiritualidade.

Como elas conseguiram – os milhões de mulheres que não eram Phillis Wheatley, ou Lucy Terry, ou Frances Harper, ou Zora Hurston, ou Nella Larsen, ou Bessie Smith; ou Elizabeth Catlett, ou Katherine Dunham também – me leva ao título desse ensaio, “Em busca dos jardins das nossa mães”, que é uma questão pessoal ao mesmo tempo que é compartilhada, no tema e significado, por todas nós. Eu descobri, enquanto pensava a respeito do mundo de longo alcance que é a mulher negra criativa, que frequentemente a resposta mais verdadeira à questão que realmente importa, pode ser encontrada bem perto.

No final do século XX minha mãe fugiu de casa para casar-se com meu pai. Casamento, e também fugir de casa, era esperado de meninas de dezessete anos. Aos vinte anos, ela era mãe de duas crianças e estava grávida de uma terceira. Cinco crianças depois, eu nasci. E foi assim que eu conheci minha mãe: era uma mulher grande, suave, de olhos amorosos que raramente ficava impaciente. Seu temperamento rápido e violento só aparecia algumas vezes por ano, quando ela brigava com algum senhorio branco que sugeria que os filhos dela não deveriam ir para a escola.

Ela fez todas nossas roupas, até os macacões dos meus irmãos. Ela fez todas as toalhas e lençóis que usamos. Ela passava o verão fazendo conservas de vegetais e frutas. Ela passava as tardes de inverno fazendo colchas para cobrir todas as nossas camas.

Durante o “expediente”, ela trabalhava ao lado – não atrás – do meu pai nos campos. Seu dia começava antes do sol nascer e não terminava até tarde da noite. Não havia momento para ela se sentar sem ser perturbada, para desenrolar seus próprios pensamentos pessoais; não havia tempo livre de interrupções – de trabalho ou dos pedidos barulhentos dos seus muitos filhos. E mesmo assim, foi na minha mãe – e todas as nossas mães que não eram famosas – que eu fui buscar o segredo que alimentou aquele espírito criativo amordaçado e frequentemente mutilado, mas vibrante, que as mulheres negras herdaram e que ressoa em lugares ermos e improváveis até hoje.

Mas quando, você me pergunta, minha mãe sobrecarregada tinha tempo para pensar e se importar em alimentar seu espírito criativo?

A resposta é tão simples que muitos de nós passaram anos encontrando. Nós procuramos no alto, quando devíamos ter procurado em todos os lugares possíveis.

Por exemplo: no Instituto Smithsoniano em Washigton, D.C, está uma colcha que não parece com nenhuma outra no mundo. Em imagens caprichosas e inspiradas, ao mesmo tempo que simples e familiares, a colcha retrata a história da Crucificação. Ela é considerada rara, de preço imensurável. Embora ela não siga nenhum padrão de costura de colchas, apesar de ser feitas de trapos singelos, é obviamente o trabalho de uma pessoa de imaginação poderosa e profunda espiritualidade. Abaixo dessa colcha eu vi uma nota que dizia que ela tinha sido feita por “uma mulher negra anônima no Alabama, cem anos atrás.”

Se pudéssemos localizar essa mulher negra “anônima” do Alabama, ela seria uma das nossas avós – uma artista que deixou sua marca com os únicos materiais que ela podia bancar, e no único meio que a sua posição na sociedade permitia que ela usasse.

Como Virginia Woolf escreveu, também, em Um teto todo seu:

Gênios de toda forma devem ter existido entre as mulheres da mesma forma que devem ter existido na classe trabalhadora [Mude para “escravas” e “as esposas e filhas dos arrendatários.”] Eventualmente uma Emily Bronte ou um Robert Burns [mude para “uma Zora Hurston ou um Richard Wright”] resplandece e prova sua presença. Mas certamente nunca foi marcado no papel. Quando, entretanto, alguém lê sobre uma bruxa sendo afogada, uma mulher possuída por demônios [ou “Santidade”], ou uma feiticeira vendendo ervas [ nossos raizeiros], ou mesmo um homem notável que tinha mãe, então acho que estamos no rastro de um romancista perdido, um poeta suprimido, ou uma Jane Austen muda e inglória… Sem dúvida, eu me arriscaria a adivinhar que Anônimo, que escreveu muitos poemas sem assiná-los, era, frequentemente, uma mulher…

E assim nossas mães também, mais anonimamente que não, lidaram com sua faísca criativa, a semente da flor que elas nunca imaginaram ver: ou como uma carta selada que elas não podiam ler perfeitamente.

Assim também é, certamente, com minha própria mãe. Ao contrário das canções de “Ma” Rainey, que mantiveram o nome da sua criadora mesmo enquanto saiam da boca de Bessie Smith, nenhuma canção carregará o nome da minha mãe. Mesmo assim tantas das histórias que eu escrevo, que todas nós escrevemos, são as histórias das nossas mães. Só recentemente eu entendi isso: que com o passar dos anos em que eu escutei as histórias que a minha mãe contava sobre sua vida, eu não só absorvi as histórias, mas algo na maneira em que ela falava, algo da urgência que envolvia que suas histórias – assim como sua vida – deveriam ser gravadas. É provavelmente por essa razão que tanto do que eu escrevi seja sobre personagens cujos semelhantes da vida real são tão mais velhos que eu.

Mas a contação dessas histórias, que vieram tão naturalmente dos lábios da minha mãe como sua respiração, não foi a única forma que minha mãe se mostrou como artista. As histórias, também, estavam sujeitas à distração, a morrer sem conclusão. Os jantares tinham que ser feitos, o algodão devia ser colhido antes das grandes chuvas. A artista que minha mãe foi e é se desvelou para mim só depois de muitos anos. E isto é o que eu notei, finalmente:

Como Mem, personagem em A terceira vida de Grange Copeland, minha mãe enfeitava com flores qualquer barraco em que nós éramos forçados a morar. E não só a típica prateleira esfarrapada de zínias. Ela plantava jardins ambiciosos – e ainda planta – com mais de cinquenta variedades de plantas que floresciam do começo de Março até o fim de Novembro. Antes de sair de casa para ir para os campos, ela regava as flores, aparava a grama, e arranjava novos canteiros. Quando ela voltava dos campos ela ia dividir bulbos, cavar, arrancar e replantar rosas ou podar galhos dos seus arbustos mais altos ou das árvores – até que a noite chegasse e estivesse escuro demais para ver.

O que quer que ela plantasse crescia como mágica, e sua fama de cultivadora de flores se espalhou por três países. Por causa da criatividade dela com as flores, mesmo as minhas memórias de pobreza são vistas por uma moldura de flores – girassóis, petúnias, rosas, dálias, forsítias, espiréias, delfínios, verbenas… e assim por diante.

E eu lembro das pessoas vindo para o quintal da minha mãe para receberem mudas das flores delas; eu ouço de novo os elogios que choviam nela porque, independente de quão rochoso era o solo em que ela chegava, transformava em um jardim. Um jardim com cores tão brilhantes, com um design tão original e tão magnífico, cheio de vida e criatividade, que até hoje as pessoas dirigem por nossa casa na Georgia – perfeitos estranhos e estranhos imperfeitos – e pedem para posar ou andar entre a arte da minha mãe.

Eu percebo que só quando minha mãe está trabalhando nas suas flores que ela fica tão radiante ao ponto de ficar quase invisível – exceto como Criadora: mãos e olhos. Ela está envolvida com o trabalho que a sua alma deve ter. Organizando o universo como a imagem da sua concepção pessoal de Beleza.

Seu rosto, enquanto ela prepara a Arte que é seu dom, é o legado de respeito que ela deixa para mim, por tudo que ilumina e acalenta sua vida. Ela entrega respeito pelas possibilidades – e o desejo de agarrá-las.

Para ela, tão limitada e impedida de tantas formas, ser uma artista ainda é uma parte diária da sua vida. Essa habilidade de seguir firme, de formas tão simples, é o trabalho que as mulheres negras tem feito por tanto tempo.

Esse poema não é o suficiente, mas é alguma coisa, para a mulher que, literalmente, cobriu os buracos de nossos muros com girassóis:

Eram mulheres então

A geração da minha mamãe

Roucas de voz – Firmes de

Passo

Com punhos e com

Mãos

Como derrubaram

Portas

E passaram ferro em

Engomadas

Camisas

Como conduziram

Exércitos

Generais Encurralados

Por campos

Minados

Cozinhas

Engatilhadas

Para descobrir livros

Escrivaninhas

Um lugar para nós

Como elas sabiam o que nós

Devíamos saber

Sem conhecer uma página

Sequer

Por elas mesmas.

Guiada por minha herança de amor e beleza e pelo respeito pela força – em busca do jardim da minha mãe, encontrei o meu próprio.

E talvez na África, mais de duzentos anos atrás, tenha existido tal mãe; talvez ela tenha pintado enfeites vivos e ousados, de laranja, amarelo e verde, nas paredes da sua cabana; talvez ela tenha cantado – numa voz como a de Roberta Flack – docemente pelas quadras da sua vila; talvez ela tenha tecido os mais belos tapetes ou contado as  histórias mais engenhosas de todas as vilas de griôs. Talvez ela tenha sido uma poeta – apesar de somente o nome da sua filha esteja assinado nos poemas que conhecemos.

Talvez a mãe de Phillis Wheatley também fosse uma artista.

Talvez, para além da vida biológica de Phillis Wheatley, a assinatura da mãe dela esteja evidente.

A Porta do Não Retorno — Dionne Brand

Tradução: Lourdes Modesto

BRAND, Dionne. A map to the door of no return: notes to belonging. [s.l.]: Doubleday Canada, 2001. p. 3–6.

Uma consideração circunstancial do estado das coisas

Meu avô disse que ele sabia de qual povo nós viemos. Eu tagarelei todos os nomes que eu sabia. Yoruba? Ibo? Ashanti? Mandingo? Ele disse não para todos eles, dizendo que lembraria se escutasse o nome certo. Eu tinha treze anos. Estava ansiosa para que ele lembrasse.

Eu o azucrinei por dias. Ele me disse para que eu parasse de aborrecê-lo que assim ele lembraria. Ou para parar de aborrecê-lo, senão ele não lembraria. Eu o rondava em qualquer lugar em que ele estivesse. Eu o seguia perguntando-o se ele queria que eu fizesse isso ou aquilo para ele, limpar seus óculos, engraxar seus sapatos, trazer o seu chá. Eu o estudava atentamente quando ele vinha para casa. Eu procurava nos pelos cinzentos do seu bigode por qualquer sinal que sugerisse que ele estava prestes a falar. Ele levantava seu jornal Sunday Guardian para bloquear a minha visão. Ele dizia xô!, mandando que eu encontrasse algum livro para ler ou trabalho para fazer. As vezes parecia que Papa estava prestes a se lembrar. Eu imaginava puxar a palavra da língua dele se eu soubesse apenas a primeira sílaba.

Eu vasculhei a biblioteca San Fernando e não encontrei nenhuma outra lista de nomes naquela época. Sem poder encontrar outros nomes, eu só podia repetir aqueles que eu sabia, perguntando a ele se ele tinha certeza de que não era Yoruba, e Ashanti? Eu não conseguia me conter. Eu queria ser qualquer uma das duas. Eu tinha ouvido falar que eles eram um povo nobre. Mas também podia ser Ibo; eu tinha ouvido falar que eles eram gentis. E eu tinha seguido a guerra em Biafra. Eu estava do lado deles.

Papa nunca se lembrou. Toda semana eu perguntava se ele tinha lembrado. Toda semana ele me dizia não. Então eu parei de perguntar. Ele estava desapontado. Eu estava desapontada. Depois daquilo nós vivemos neste desapontamento mútuo. Havia uma rachadura entre nós. Que levou a um tipo de estranhamento. Depois daquilo ele envelheceu. Eu desabrochei. Um pequeno espaço se abriu em mim.

Eu carreguei esse espaço comigo. Com o tempo este espaço mudou de forma e aspecto de acordo com que as questões que ele evocava mudaram de sua aparência e ângulo. O nome do povo de que tínhamos vindo parou de ter importância. Um nome teria conformado uma criança de treze anos. A questão, entretanto, era mais complicada, tinha mais nuances. Aquele momento entre meu avô e eu, várias décadas atrás, revelou uma fenda no mundo. Uma resposta fixa teria consertado esta fenda rapidamente. Eu teria seguido feliz com um simples nome. Eu poderia ter brincado com ele por alguns dias e então deixado de lado.

Esquecido. Mas a ruptura que esta troca com o meu avô tinha exposto era maior que a necessidade de vínculos familiares. Era uma ruptura na história, uma ruptura na qualidade da existência. Também era uma ruptura física, uma ruptura geográfica.

Meu avô e eu reconhecemos isso, e por isso nós ficamos mutuamente desapontados. E é por isso que ele não pode mentir para mim. Teria sido tão fácil ter confirmado qualquer um dos nomes que eu tinha proposto a ele. Mas ele não podia ter feito isso porque ele também defrontou este momento de ruptura. Nós não éramos do lugar em que vivíamos e não podíamos lembrar de onde éramos ou quem nós éramos. Meu avô não podia convocar a visão de uma paisagem ou de um povo que iria somar a um nome. E isso era profundamente perturbador.

Não ter um nome para requerer era não ter passado; não ter passado apontava para a fissura entre o passado e o presente. Aquela fissura está representada na Porta do Não Retorno aquele lugar de onde nossos ancestrais partiram de um mundo para outro; do Velho Mundo para o Novo Mundo. O lugar onde todos os nomes foram esquecidos e onde todos os começos foram remodelados. Em algum sentido desolado, foi o lugar de criação dos Negros na Diáspora do Novo Mundo ao mesmo tempo em que significou o fim dos começos rastreáveis. Começos que podem ser notados por meio de um nome ou do conjunto de algumas histórias familiares que se estendem mais longe no passado do que quinhentos e alguns anos, ou os tipos de começos que podem ser expressos em um nome que sucessivamente delinearam um território ou uma ocupação. Eu estou interessada em explorar a criação deste local — a Porta do Não Retorno, um local esvaziado de começos — como um local de pertencimento ou não-pertencimento.