BRAND, Dionne. Bread out of stone. [s.l.]: Vintage Canada, 1998. p. 41-42.
Era aquele escritoriozinho no fundo de um prédio na rua Keele. Eu tinha ligado na manhã anterior, procurando por um trabalho, e o homem respondeu mencionando aquele nome escocês forte do meu suposto pai, me disse que eu viesse logo e que o trabalho seria meu. Sim, foi naquele escritoriozinho no fundo de um prédio na rua Keele quando eu estava completando dezoito anos, e eu vesti o meu melhor vestido, salto alto e batom e quarenta e quatro quilos de esforço desesperado em emular heterossexualidade feminina, desejando parecer o que o homem do telefone tinha imaginado para que assim eu conseguisse o trabalho. Quando eu entrei naquele escritoriozinho e vi o sorriso do homem ao telefone se apagar e o trabalho desaparecer por que de repente era necessário ter experiência ou o trabalho tinha sido dado para outra pessoa, não, não haveria entrevista e se fosse hoje eu teria processado aquele merda por ter me feito ir embora com o meu eu de dezoito anos tentando não chorar e sentindo o riso, o riso que as pessoas Negras aprendem, desdenhoso e que desdenha de si, crescendo em meu peito. Sim, foi o homem ao telefone, naquele escritório na rua Keele, a sua fantasia de uma garota escocesa que ele poderia molestar enquanto ela preenchia papéis nos gabinetes do escritoriozinho, foi a vontade de chorar no meu melhor vestido e no salto alto em que eu quase não conseguia andar e com o batom que a minha irmã me ajudou a colocar direito além de fazer as minhas sobrancelhas e me obrigar a passar base para, eu imagino, embotar o impacto da minha negritude para que o homem no escritoriozinho me desse o trabalho. O que impulsionou as minhas pernas de volta ao metrô foi a vergonha. Que eu pudesse pensar em conseguir aquele trabalho, mesmo que um trabalho tão pequeno e desprezível, que um homem branco qualquer pudesse esquecer de si e ao menos me ver como alguém a quem ele pudesse explorar, e eu ansiava ser considerada alguém que se pudesse explorar. Era 1970. Uma cozinha então, talvez, não um escritório. Minha irmã trabalhava nas cozinhas de hospitais e foi lá onde eu encontrei um trabalho na semana seguinte, e foi lá onde nós esperamos o refluxo e o fluxo de benevolência e necessidade nesse lugar branco.
Lívia Natália diz:
Caramba, quando a gente quer discutir como somos o alvo de violências interseccionadas, um texto como esse nos ensina muito.
29 de janeiro de 2021 — 07:57